Somos Todos Santa Maria – Por Memória, Verdade e Justiça

Em breve, todos os artigos e reportagens da seção Somos Todos Santa Maria neste novo site, expondo documentos exclusivos entregues pela Polícia de Santa Maria, e por familiares das vítimas

DIA DE FINADOS
Comoção Local e Indiferença Nacional

3 de novembro de 2013

Santa Maria, repentinamente o vigor da juventude / desvaneceu, sob a implacável olência do cianeto, / evaporadas 242 almas no auge do vicejo. / Santa Maria, até quando o amargor, da vida tal vicissitude? / Foram teus filhos! Pisoteados, queimados, asfixiados. / Ânsia por mundos mais dourados, / infortúnio, a sentença de seus pecados?

Tragédia em Santa Maria, segundo incêndio mais mortal da história do Brasil. Longos nove meses se passaram desde então, por outro lado muito curtos diante de tanto infortúnio para uma sociedade só: meses de completo esquecimento midiático, político e social além dos arquivamentos jurídicos, que não responsabilizam os criminosos. Ingredientes macabros à brasileira, tão trágicos quanto o próprio fogaréu, e as vidas queimadas e asfixiadas em si.

O Brasil não “parou” à época no sentido mais profundo, solidário, mobilizador do termo – com exceção dos índices de Ibope que representavam a inócua paralização frente às telas de TV. A desgraça alheia é famosa por, não raras vezes, servir como anestesia das próprias desgraças.

Algumas ocasiões em que essas massas se dão conta, ainda que momentaneamente de que nem só de pipoca, telenovela como o real e o real como telenovela vive o homem – geralmente, um parcial despertar advindo de tragédia que bateu à própria porta –, torna-se efêmero, facilmente manipulado todo e qualquer ativismo. O exercício da cidadania é algo a ser construído na vida cotidiana.

Estava totalmente claro, desde os primeiros momentos em 27 de janeiro de 2013 se desenhava perante todo aquele jogo político, empresarial, midiático, social que, a partir de Santa Maria, repetir-se-ia mais um tragicamente impune capítulo na história deste país.

Enquanto setores empresariais e políticos à época, amparados fielmente pela mídia, tentaram – com sucesso – inculcar que o incêndio na Boate Kiss não passara de mera fatalidade e não problema estrutural deste país, como realmente foi, fica cada vez mais evidente, inversamente proporcional ao total descaso nacional, que se tratou de retrato perfeito do Brasil no que diz respeito à tragédia em si além das implicações de corrupção política e empresarial, do sensacionalismo e posterior esquecimento midiático, da indiferença social e da impunidade advinda de corrupção também judiciária que reina soberana no Brasil – desde o início, era sabido por aqui (leia nesta seção Fantasmas em Meu Quarto: Assassinos de Corpos e de Almas, de 28 de janeiro, um dia após a tragédia de Santa Maria) que exatamente assim seria, enquanto o choro era desesperada e copiosamente dolorido, noticiado – ou “contemplado”? – pela Imprensa em séria crise financeira e moral, enquanto a sociedade via-se generalizadamente “indignada”, sempre ela manifestando o mesmo comportamento e as idênticas reações, frente às piores catástrofes – desde que acometa apenas ao vizinho –, de norte a sul do Brasil. Onde está a Primavera?

Caos na Pátria do Futebol

Cá, o pungente sabor de consternar. / Santa Maria, uno pulsar, / o velho Porto… Alegre não há de estar. / As ubíquas lágrimas hás de um dia enxugar. / Santa Maria, extasiante dádiva a consolar / teus filhos. Minh’ alma, vem da amargura livrar. / Austrais ventos que levem seu doce afago, o de Santa Maria. / Ao repousar por sobre tuas relvas, há de livremente ruflar / cada alma, a de teus 242 filhos. / Cá, cá, Santa Maria, díspar pesar!

Andreia Fontana, editora-chefe do Diário de Santa Maria, escreveu editorial no sábado retrasado, 26/10:

Muitos empresários nos procuram para pedir que deixemos de lado essa cobertura [desdobramentos da tragédia], num entendimento de que noticiar o assunto enluta a cidade, o que [pasmem!] é ruim para o seu desenvolvimento.

Certamente, nenhum desses empresários mencionados pela editora Andreia perdeu filhos na fatídica madrugada de 27 de janeiro último. O lucro à frente do luto, sempre. Selvageria humana contemporânea. Onde está a mídia auto-declarada independente e combativa agora, para fazer denunciar isso, e ecoar a voz da justiça? Pelo contrário: “coincidentemente”, a Imprensa não aborda o caso enquanto, medíocre representante da mais patética Pátria de Chuteiras como observou brilhantemente o jornalista Luciano Martins Costa no Observatório da Imprensa em 31/10, está histericamente atenta ao caso Diego Costa, quem recusou jogar pela seleção brasileira para jogar pela espanhola. Histérica e oportunisticamente atenta mídia neste caso, é bom ressaltar em consonância com a abordagem de Luciano Costa, sempre pertinente com seu peculiar brilhantismo.

Desta maneira, a tragédia de Santa Maria tornou-se, aos interesses e medos alheios – medo de encarar a realidade que implicaria transformá-la –, exitoso passado remoto na sucessão de horrores deste país, onde um capítulo da barbaridade vai passando por sobre o outro, a mídia busca na desgraça sua graça, ninguém se lembra de absolutamente nada em um curtíssimo espaço de tempo, e tudo segue como sempre esteve. Pois que venha o próximo Carnaval, sobremaneira colorido pela Copa do Mundo de 2014.

Samba no pé, uma mão na taça do ano que vem e o diário pão na barriga com o assistencialismo político nacional, o brasileiro já tem. Portanto, se os sagrados e milenares Pão e Circo já estão garantidos, preocupar-se com o quê? Mudar o status quo por quê?

Finados e Descaso

Neste 2 de novembro, Dia de Finados, mais de nove meses após a tragédia de Santa Maria, suas 242 vítimas, tão vítimas do silêncio quanto do cianeto, passaram desapercebidas enquanto a dor de familiares e amigos das vítimas apenas cresce e prestaram, isolados, suas homenagens ilhados pela terra da indiferença.

Nos dias subsequentes ao incêndio, somavam-se mortos paralelamente às mais patéticas aulas de anijornalismo e da total atenção da sociedade a qual, desde 27 de janeiro, já sequer fazia suas refeições sem estar focada em chamas, no choro mais doído e em rostos de cadáveres em pleno caixão, focados pelas câmeras do lucro descomedido, prontos para descerem as profundezas da terra.

Poucos meses depois, em pleno Dia dos Mortos ninguém mais se lembra, com a devida consciência, que aquilo que acabou sendo impossível de não se noticiar, e noticiado com a mesma precariedade de sempre especialmente quando interesses políticos e empresariais estão em questão: que aquele incêndio fora fruto de corrupção e profundo descaso contra a vida alheia. Mas passou…

Confundiu-se, em seu sentido mais amplo, em meio ao excesso de informações carente de contextualização e de pleno entendimento.

Matéria da TV RBS, afiliada à Rede Globo no Rio Grande do Sul, lembrou-se melancolicamente das 242 almas e de seus entes queridos no Dia de Finados. O Jornal do Almoço tratou das questões técnicas e estatísticas do Cemitério Ecumênico de Santa Maria, principal da cidade (medíocre reportagem).

O jornal O Globo não lembrou Santa Maria no Dia de Finados com a mínima consciência, mas em seu sítio na Internet o que se podia ver de mais destacado foi o 5º dia da badalada e bilionária São Paulo Fashion Week. Uma reportagem do impresso tratando do feriado em Santa Maria, manteve o tom da TV Globo: o túmulo mais visitado, no caso do cantor Teixeirinha, além de outras questões funerais, geográficas e estatísticas envolvendo o cemitério. Do jeito que o brasileiro merece?

A triste realidade é que as “reportagens” da RBS no Rio Grande do Sul, das poucas que ainda veiculam o caso, são extremamente reduzidas, no tamanho e na qualidade jornalística, e sempre passam bem distante de seus editoriais. Que esperar das Organizações Globo que, em sua versão impressa, no dia seguinte à tragédia, publicou uma charge, o macabro humor jornalístico? (veja a charge de  péssimo gosto Chico Caruso no Globo).

No dia 28 de janeiro, o jornal O Estado de S. Paulo propôs em seu sítio na Internet receber reclamações de casas noturnas que, de alguma maneira, desrespeitavam leis de segurança, prometendo investigar cada uma delas.

A primeira impressão, dado o histórico do jornal e da Imprensa brasileira em geral, foi realmente que tal proposta fora elaborada no Departamento de Marketing da empresa jornalística, ao invés de movida por sensibilidade editorial e por consciência cidadã.

Vários e vários leitores, na maioria jovens, passaram imediatamente a atacar no espaço de comentários a empreitada justiceira de O Estado de S.Paulo, acusando-o de hipócrita, sensacionalista, oportunista entre outras coisas, evidenciando-se assim, uma vez mais, o quase total descrédito dos grandes veículos de comunicação do país.

Mesmo diante disso, enquanto levantamos a suspeita de jogada de marketing sobre o jornalismo, enaltecemos a iniciativa alegando que o tempo diria de que lado estava o jornalão.

O tempo passou, e a resposta veio a cavalo, desferiu-se precisamente, sem a menor piedade na cara da sociedade: os leitores furiosos tinham razão…

País do Jeitinho Fatal

Povo que esquece seu passado, é obrigado a vivê-lo novamente
(Nicolás Avellaneda)

Em 1º de novembro, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) prestara homenagem ao Hospital da Guarnição de Santa Maria (HGU). “O intuito era complementar os agradecimentos a todos os hospitais e pronto atendimentos de Santa Maria pelos serviços prestados no dia da tragédia”, afirmou a Associação. Ao longo de todo esse tempo de lá para cá, inúmeras homenagens de entes queridos, vigílias, comoventes declarações e valente luta por justiça não ecoa no Brasil: limita-se à Santa Maria, e com o velho e indispensável “q” do jeitinho brasileiro.

No restante do Brasil, é como se tais acontecimentos se dessem em outra dimensão dada a falta de informações e de interesse, na era da informação global e em tempo real.

Sobre a luta por justiça, dia 30/10 os familiares das vítimas, através da AVTSM juntamente com o Movimento do Luto à Luta e às Mães de Janeiro, deixaram a vigília em frente ao Ministério Público da cidade por considerar satisfatórias as explicações do subprocurador geral da Justiça para Assuntos Jurídicos, Ivory Coelho Neto, de que, em reunião com os próprios familiares, a solicitação feita ao Conselho Superior do MP para que “o inquérito civil da tragédia não fosse arquivado em relação a integrantes da prefeitura. No dia 16 de setembro, ele havia entregado novas informações ao Ministério Público (MP), a partir de dois novos inquéritos em andamento na Polícia Civil” (em A Razão, diário de Santa Maria).

“Os familiares alegam que há novos indícios de irregularidades na liberação de alvarás para a casa noturna. Junto ao mesmo pedido, eles juntaram uma investigação da Policia Civil que apontou fraude na coleta de vizinhos da danceteria. De acordo com a Polícia, das 60 assinaturas coletadas, apenas 21 eram moradores da região, e outros declararam morar próximo à boate, mas na verdade residiam em outros bairros da cidade. A prefeitura nega tais irregularidades na liberação dos alvarás”, segundo informou o sítio na Internet da AVTSM em 27/10.

Em meados de outubro, familiares haviam coletado milhares de assinaturas de moradores da cidade central do estado gaúcho, a fim de pressionar o MP a reabrir as investigações.

Isso tudo, grande novidade à nação geral, parece um mundo à parte ao velho Patropi de tantos carnavais, e de fatos como este de Santa Maria que se acumulam, desfilam pela passarela do crime organizado estatal, empresarial e midiático sem nenhuma perspectiva de solução.

Em 2/11, o Jornal do Sbt – Rio Grande noticiou que no dia anterior fora reaberto o inquérito civil que investiga participação de servidores da Prefeitura de Santa Maria na tragédia, incluindo o prefeito da cidade, Cezar Schirmer PMDB. A entrega de novos documentos feita por familiares das vítimas foi essencial para a reabertura do processo até hoje não concluído pela polícia, que inclui a liberação de alvarás para funcionamento da Boate Kiss, por parte do prefeito de Santa Maria. Notícia curta, sem contextualização. Foi o que de “melhor” apresentou a mídia sobre o assunto.

“Para ver se houve alguma responsabilização, se houve alguma pessoa culpada, que seja responsabilizada”, afirmou Luiz Fernando Smaniotto à reportagem do Jornal do Sbt, advogado da AVTSM quem também alegou ter plena convicção de que existem provas neste sentido, o que é evidente desde os primeiros dias pós-tragédia. Nove meses depois, perante todas as evidências ainda estamos no “para ver se houve…”. Terror à brasileira.

Mas já estamos acostumados, devidamente amestrados, vivemos alegremente acomodados com as diversas anestesias da consciência que nos são aplicadas todos os dias. Portanto, nem nos apercebemos desse festival do terror, ou quando é impossível negá-lo, já não incomoda.

A análise dos novos documentos apresentados pelos familiares se dará após a conclusão de dois outros inquéritos, em fase de finalização. Caso abafado. Em um de nossos contatos telefônicos com a tia de uma das vítimas dias atrás, afirmamos que “a luta por justiça deve continuar, embora saibamos onde dará isso…”. Em nada, com cuja ideia a familiar da vítima concordou de imediato. Otimistas nas atitudes, pessimistas quanto ao futuro: até quando Brasil?

Cezar Schirmer – Em 2010, o prefeito de Santa Maria estendeu o contrato de empresas de transporte público da cidade, sem licitação. Posteriormente, garantiu comparecer a uma Audiência Pública, sem jamais ter comparecido a ela, maior da história da cidade. Atualmente, Schirmer é investigado por improbidade administrativa envolvendo a ausência de licitação para o transporte público.
No país da pizza, este “mal menor” envolvendo transporte santa-mariense, sem sombra de dúvidas, redundará em outro arquivamento. Se fosse feita justiça em relação à Boate Kiss, já estaria bom, e até demais.

Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria

Ninguém está mais desesperadamente escravizado, que aquele que falsamente acredita ser livre
(Johann Wolfgang von Goethe)

Adherbal Alves Ferreira, pai de uma das vítimas fatais, Jennefer Mendes Ferreira, estudante de Psicologia de 22 anos, é presidente da AVTSM, criada pouco menos de um mês da tragédia, em 23 de fevereiro deste ano.

Em uma das missas de 7º dia em favor das vítimas, o sr. Adherbal recebeu forte impulso para falar publicamente, o que não era comum em sua vida, discreta. “Abracei outros pais, usando o som”. Foi naquela ocasião que o pai de Jennefer deu a ideia da criação de uma associação.

AVTSM possui o Espaço do Sobrevivente em seu sítio na Internet, cuja finalidade é proporcionar amparo à saúde daqueles que sobreviveram ao incêndio, sobretudo devido à imensa dificuldade que muitos encontram na busca por remédios no sistema público de saúde. Horror à brasileira sem fim.

Em outubro, o sr. Adherbal fez uma viagem aos Estados Unidos, à cidade de Providence no estado de Rhode Island, onde participou do Congresso Mundial de Queimados, do dia 9 a 12 que reuniu centenas de sobreviventes de incêndios, médicos, bombeiros e profissionais ligados ao tema, inclusive sobreviventes da tragédia da boate The Station Nightclub na cidade norte-americana de West Warwick, exatamente em Rhode Island, em 20/2/2003, matando 100 pessoas – bem menos da metade, quase 1/3 das vítimas da Boate Kiss.

O fórum, anual, visa incentivar o compartilhamento de histórias, dar apoio e promover a recuperação das vítimas de incêndios, além de discutir questões jurídicas e de saúde. Naqueles dias houve testes de segurança, de prevenção de incêndios, vendavais, explosões, entre outros, na empresa FM Global, onde os presentes puderam registrar alguns deles.

O sr. Adherbal também participou intensamente das homenagens, palestras e demais programações do evento, conhecendo inúmeras pessoas, entre organizadores, sobreviventes, empresários.

“Lá, aconteceu do mesmo jeito de Santa Maria, por ganância e falhas do sistema, vistoria com vários erros. Porém, soube-se que dois proprietários, após algum tempo, entregaram-se à polícia. Neste evento aprendi muito. Apesar da nossa dor ser muito forte, conheci, vi e ouvi relatos que me tocaram muito”, afirmou o pai de Jennefer (leia reportagem completa no sítio da AVTSM).

Quando o presidente da AVTSM será oferecida a oportunidade de viajar a algum estado brasileiro, a fim de compartilhar suas experiências, dores e sede de justiça? Nunca?

Assassinos de Corpos e de Almas

Hoje, 30 de outubro, o céu está em festa. É aniversário do jovem Rodrigo Dellinghausen Bairros Costa.
Recebemos uma foto e uma mensagem, enviada por sua mãe, Medianeira Costa.

Filho,

Hoje em nosso tempo tu estarias completando 21 anos. É um aniversário diferente sem o aniversariante, mas como essa contagem de tempo é diferente onde tu estás , pedimos ao bondoso Deus e aos amigos do plano espiritual que te ampare , conduza e ilumine nesta tua nova caminhada junto com teus “novos amigos” ou “velhos conhecidos” de outras oportunidades, todos unidos em prol de um objetivo maior, o Amor.

Soldado, cumpre tua missão da melhor maneira possível, teu sonho aqui era “voar”, aprender cada vez mais e progredir sempre,
agora livre do corpo tem a oportunidade e o livre arbítrio de usufruir com disciplina o que te é oferecido.

Que nós, aqui, possamos ter a tranquilidade e o entendimento mesmo sentindo uma falta enorme de vocês, que estão bem.

Aos que ficam, resta a saudade que aumenta a cada dia, mas passageira e a certeza de um reencontro.

Com amor, tua família. (Postado na página da AVTSM no Facebook)

Na página da AVTSM no Facebook, entre várias mensagens de se emocionar e se entristecer com vozes sofridamente caladas, pede-se a opinião aos familiares a amigos: se no próximo Natal, que segundo a Associação perdeu o encanto de sempre, deverá haver enfeites ou não.

Assim seguem os que ficaram, vozes no deserto tão unidas quanto sufocadas, buscando dentro de si mesmas o consolo, à procura de um novo significado para a vida. Brasil, país assassino de corpos e de almas. Até quando?

Recentemente, após falarmos com uma das familiares das vítimas de Santa Maria, dois conhecidos, universitários tanto quanto a maioria dos 242 jovens vítimas do cianeto e do silêncio, disseram-nos coisas horrendas conforme noticiamos em Memórias de um Escritor no País da Mediocridade role a tela: uma garota disse que aquelas vítimas eram culpadas por não estarem em casa estudando, mas dançando – detalhe: se não bastasse o próprio absurdo do “raciocínio” em si, a própria autora de tal excrecência verbal, parece piada mas não é, já havia combinado com amigas universitárias ir a uma casa noturna da cidade de Florianópolis dias depois, embora não seja seu costume, e mais adiante iria à famosa e badalada Oktoberfest, festa da cerveja anual da cidade de Blumenau.

Fezes intelectuais e morais idênticas às que ouvimos de jovens “religiosos” no dia da tragédia a fim de nos consolar entre lágrimas em frente à TV no dia 27 de janeiro, relatados à época por nós no artigo Assassinos de Corpos e de Almas, mais abaixo. Detalhe hipócrita da vez: uma das “religiosas” que optara por escolher o caminho mais confortável, o de condenar às vítimas de Santa Maria, possuía dois namorados então.

Vale ainda recordar que, em janeiro de 2009, desabou 40% do teto do suntuoso “templo” da Igreja Renascer em Cristo de São Paulo, de cunho protestante, por negligência de seus líderes, especialmente do apóstolo formado em Marketing, o estelionatário Estevam Hernandes que meses antes fora condenado por ter sido pego com sua esposa-bispa em aeroporto, deixando o território norte-americano, com dezenas de milhões de dólares escondidos em uma Bíblia Sagrada – o dito-cujo é ligado a Paulo Maluf, o que explica a total desconsideração midiática sobre este grave caso.

Naquela ocasião nove pessoas morreram, e 106 ficaram feridas: qual a explicação religiosa para tal “fatalidade”? Ao menos por questões de coerência, imbecilidades à parte, a tragédia da Igreja Renascer teria sido, então, consequência das más escolhas dos religiosos ali presentes? Eis que a Grande Intentona do Senhor contra os pecadores atinge Sua própria Casa, também? Pois é… Na selvageria contemporânea do “salve-se quem puder”, pimenta nos olhos alheios é colírio, dir-nos-ia o filósofo.

Outro comentarista de uma das ligações telefônicas a familiares das vítimas da Boate Kiss, contou que morria de rir durante a conversa com Santa Maria em prol de justiça – criticamos, naquela ligação, a passividade conivente de nossa individualista sociedade, evidente na indiferença, afirmações estas que que podem, muito bem, explicar a agressividade disfarçada de gracejo e descaso do “futuro do Brasil”.

País assassino de corpos e de almas!

O Brasil precisa rever seus conceitos, passar por uma inevitável e dolorosa auto-análise seguida de muita prática que venha de seu interior e não de estereótipos, se realmente quiser deixar de ser o país do descaso, do “nada funciona”, das catástrofes, o vice-campeão mundial de mortes violentas anuais em números proporcionais, há décadas – atrás apenas da Colômbia, e a frente de países como Iraque, Síria e Afeganistão. A próxima vítima pode não ser seu vizinho, mas você mesmo. Então, será tarde demais…

Vale reforçar aqui a conclusão de nosso já mencionado artigo logo após a catástrofe em terras gaúchas: Enfim, até o próximo capítulo do nosso espetáculo do horror, gente. E salve-se quem puder…

Vai, sutileza incomparável – a tua, Santa Maria: / dá a cada um teu cálido manto, / fiel ombro fagueiro. / Pôr do sol, o Guaíba é todo pranto. / Suas vicejantes margens já não mais espetacularizam, / excruciantes: choram almas, clamam copiosamente; / a teus filhos que se foram, o resplendor do Pegureiro, / da chalana compassivamente / a acenar, para neles eternamente raiar.

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